sábado, 9 de maio de 2015

CARTA PARA MIUM - DO LIVRO CARTAS NÃO REMETIDAS


Feira de Santana, 09 de maio de 2015.

Amigo Mium,

Tardiamente escrevo-lhe estas linhas pela necessidade de transmitir-lhe os meus sentimentos diante do que a vida nos surpreende, na maioria das vezes com aviso e outras sem nos dar satisfação, porque o tempo é cruel e egoísta. Só ele não passa. Passamos nós, em curto prazo, se compararmos ao tempo que o tempo tem.
Doente ainda, em recuperação de três cirurgias a que fui submetido, depressivo, várias vezes você me visitou para confortar-me, demonstrando a força espiritual que você possuía, mesmo estando em situação de enfermidade grave. Eu que deveria lhe consolar e confortar com algumas palavras, era você que me dava forças para seguir. Eu deveria ter-lhe visitado e não o fiz, na minha fraqueza dupla, ora pela depressão, ora por querer guardar a sua imagem sem o abatimento físico, imposto por esta doença horrível que lhe sacrificou, tirando-lhe do nosso convívio tão cedo. Falamos-nos por telefone diversas vezes e não percebi em você um momento sequer de fraqueza ou de desespero. Ouvia a esperança do encontro e do reencontro para as nossas conversas e momentos musicais, como vivenciamos por muitos anos.
Você foi o amigo irmão. Aquele que jamais decepcionou. Ao contrário presenteava-me com a sua presença sempre alegre e contagiante, plantando e espalhando amizade por onde andou.
As músicas do seu repertório, como “Começaria tudo outra vez” ou “Medo da Chuva”, jamais serão esquecidas na sua voz e interpretação inigualáveis. Ainda bem que tive a felicidade de gravar em CD o seu cantar. Espalharei entre amigos o CD que fizemos para homenagear Gelivar Sampaio, onde você se destaca, para que fique na eternidade dos que sobreviverem por muitos anos.
Guardarei na lembrança, em álbuns e na minha memória a sua presença, como a de um amigo que fez parte integrante de minha vida e da minha família.
Suportando a dor da perda, acompanhei o seu corpo, esta matéria finita até o cemitério e ali pude ver e saber que se encontrava os restos mortais de seu querido pai – Dimas – “Pajé”, como era conhecido carinhosamente. Por coincidência soube que você partiu na data em que completou 21 anos de sua passagem para o além. A sua fisionomia se apresentava tranquila, bonita, como quem dorme o sono dos justos.
Até breve, querido amigo. Que a energia que rege este universo possa nos abrigar e confortar para uma nova etapa.
Adeus.
Do amigo,
Milton.




MILTON E MIUM NA FAZENDA ALTO DA MARAVILHA

quarta-feira, 6 de maio de 2015

PORQUE HOJE É SABADO














Hoje, exatamente às 19h25, fui até a varanda de minha casa, para fazer a caminhada diária, recomendada pelo médico, para tratamento fisioterapeuta pós-cirúrgico. Levantei a cabeça, olhei para o céu e deparei com uma lua cheia, brilhante, daquelas que abrem as veias de qualquer poeta. Sexta-feira, véspera de sábado que é o dia da boemia, do recreio e dos encontros planejados, (pelo menos era nas décadas de 50/60), ai lembrei-me do poetinha que vivenciava todas as alegrias e curtições “porque hoje é sábado”.
O sábado era o dia do encontro com os amigos, era o dia da pelada, do baba, do encontro com a namorada para o beijo e o abraço, fonte de inspiração. Após as 22h00 a gostosa serenata pelas ruas e avenidas silenciosas, pacatas e humanas, que o plangente violão se mostrava ao acompanhar a voz do cantor apaixonado.
“A lua vem surgindo cor de prata, no alto da montanha verdejante, a lira do cantor em serenata, reclama na janela a sua amante...”.
Repeti muitas vezes estes versos de Freire Junior, gravado em disco pelo “Rei da Voz” Francisco Alves, que gravou mais de mil músicas em disco de 78 rotações, hoje esquecido pela mídia que controla a mente tacanha de um povo inculto e imbecilizado.
Sábado, pela manhã o futebol, à tarde o descanso, à noite, logo cedo, o encontro com a namorada. Noite de lua cheia, a serenata era o ponto de partida para a boemia que normalmente terminava na “Casa de Lindaura” ou no “125”, nos braços aconchegantes de lindas mulheres.
Muitos dos meus amigos, quase todos, partiram, desencarnaram, foram para outro plano. Os costumes mudaram, o romantismo acabou e a musicalidade plena de poesia ficou no passado longínquo. As janelas já não abrigam a expectativa do encontro, as portas não se abrem. Estamos gradeados, com cercas elétricas nos guarnecendo dos possíveis assaltos de criminosos que a sociedade desorganizada fabrica todos os dias. Somos uma comunidade enjaulada, sem música, sem poesia, sem literatura, à mercê de uma programação degenerativa dos costumes patrocinada pela Rede Globo, que conseguiu destruir o conceito de família.
Amanhã não poderei mais dizer – vou ao encontro dos amigos e dos amores, porque hoje é sábado.
Feira, 03.04.2015.

domingo, 3 de maio de 2015

Salvador, 12 de novembro de 1952.



Querido Pai,


Hoje, completo quatorze anos de idade, e embora eu tenha nascido em Cachoeira, o senhor me registrou com o equívoco do mês, no Cartório de Feira de Santana, declarando em meu nascimento o mês de dezembro que é o mês de nascimento do mano Edinho, pequena confusão sem muita importância. Não recebi nenhum presente, o que não estranho porque não se cultivou este hábito em nossa família, embora eu ache importante. Sei que este comportamento vem de seus pais, pelos seus costumes agrestes de quem vive no meio rural a labutar com a terra e com os animais. Sei também da sua labuta de homem responsável e honesto tentando sobreviver nesta selva de humanos que se digladiam no afã de possuírem cada vez mais bens de consumo e riquezas, nesta disputa desleal onde vencem os mais espertos que trapaceiam divorciados dos princípios morais. Para quem não tem uma profissão definida, com formação universitária e é desprovido dos artifícios da atividade mercantil, é deveras difícil. Desta vez o Diretor do Colégio permitiu a minha saída para a missa na Igreja da Piedade e após o ato religioso, vou de bonde para o Porto da Barra, tomar um banho de mar. Tenho alguns trocados ainda daqueles cinco mil reis que o senhor me mandou. Não dá para um almoço, mas não tem importância, comerei um belo de um sanduíche acompanhado de um “copão” de vitamina de banana com Neston e Nescau, depois, comerei alguns pães e mato a fome. Vou tentando levar a vida como ela é ou como se apresenta e por certo sairei daqui com alguma experiência para enfrentar as intempéries futuras. Não se preocupe. Espero nas férias poder estar com a família em Itapoan, afinal, dos seus filhos, nós, do primeiro casamento seu, ficamos separados: – Landa em Salvador com as Bandeirantes, Edinho em Lustosa interno e eu aqui na Capital também interno por vontade da madrasta, no Colégio Ipiranga. Que seja assim. O futuro, com sua sabedoria nos reservará destino melhor, tenho certeza, porque somos bons.

PS.: Os cinqüenta cruzeiros que o senhor me mandou para o reforço escolar, aproveitei parte dele para dar inicio as aulas de Capoeira com Mestre Bimba e Jiu Jtisu com Valdeck Veloso, aluno de René Bastos, um dos maiores lutadores da Bahia, para defesa pessoal, vez que preciso evitar abusos de alguns colegas maiores, maus de comportamento. A economia que faço dá para tudo.

Peço-lhe a benção.

Do seu filho,
Milton.

Publicada em maio de 2011.