quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

DE VOLTA À RUA SANTOS D’UMONT

Passei ontem pela rua, onde vivi dos cinco aos onze anos, e intervalos dos dezessete aos dezoito, na residência de meu pai e meus irmãos por mais de trinta anos. Ali Manoel Brito, construiu sua residência, com quatro quartos, três salas amplas, banheiro, dependências de empregados, quintal, cisterna e um tanque de alvenaria e cimento pra cinco mil litros de água, que era abastecido através de uma bomba manual, com uma roldana com duas manivelas, uma de cada lado, que eu e meu irmão mais velho, usávamos para bombear a água para o tanque. Lembro-me que, pegávamos um de cada lado e açoitávamos a roda, até completar o abastecimento. Tarefa que nos era passada pela madrasta, como condição para obtermos o dinheiro, para a entrada do Cinema Iris, no domingo. A sensação de ouvir Francisco Alves, em gravação, interpretando “Aquarela de Brasil”, com o bordão – “Ô, abre a cortina do passado, tira a mãe preta do cerrado, bota o rei congo no congado, Brasil, Brasil...” e a cortina da tela ia se abrindo para a exibição da película, compensava qualquer tarefa ou castigo. Naquela rua, brinquei de patinete e carrinho de rolimã, descendo ao lado, no passeio da Rua São José e à tardinha, assistia minha irmã, brincando com Marizete, cantando “Escravos de Jó” e jogando caxangá. Os vizinhos eram amigos, dóceis, respeitáveis e fraternos. Quando meu pai morreu, a madrasta logo vendeu a casa, alegando compromissos financeiros e não procedeu ao inventário. Para mim, ela entregou uma faca de prata, deixada pelo falecido, que guardo até hoje como lembrança. A casa, - ainda ontem, passei por ela, e quase chorei, ao vê-la tão abandonada, quase em escombros, como se nela jamais tivesse habitado vivente. Abrigo de amor e desamor, encontro e desencontro, agora ao léu, esperando para ser um boteco ou um comércio qualquer, sem alma de poeta, sem prosa e sem o calor da célula mater da sociedade, que hoje se refugia em condomínios, de seres desencontrados, que buscam desesperados, a companhia de um empreendimento, que supostamente lhes dará segurança. Como se estivessem seguindo o homenageado voaram todos, não em torno da “Tour Eiffel”, mas rumo ao desconhecido, por onde vagueiam os homens, sem conhecer a felicidade. Não mais as minhas idas à Rua do Meio, para buscar cola, querosene e roxo-terra, para preparar o produto, que encerou as lajotas de cerâmica que constituía o piso da residência; não mais o escovão, assentado na forma de ferro fundido, para fazer brilhar o piso; não mais Manoel, que se foi cedo; não mais a madrasta, que morreu sozinha, como sempre recomendou a todos – “cada um em sua casinha”. Adeus, Santos D’umont! Não passarei mais por você, que se encontra tão tumultuada, corredor de um trânsito ensandecido. Passarei por outras vias, para não me ver triste e saudoso dos amigos sinceros e de uma família que antes de tudo primava pela dignidade e que se desfez pela vontade única do tempo que não pára, nem dá carona, simplesmente, substitui o mortal. Feira, 14.12.2012.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

CINEMA AZTECA

Rua do Catete, nº 228, Bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa, Brasil. Ali estava plantado o Cine AZTECA, próximo da minha residência na Rua Ferreira Viana, para onde eu ia, nos dias de folga, assistir bons filmes, no conforto de uma sala de projeção cinematográfica, que deixa saudade. Em 1964, início do período negro da ditadura militar, no império da censura e do silencio da arte, e da expressão livre, surge o baiano Glauber Rocha, idealista e cineasta consagrado pela intelectualidade, espalhando conceitos e verdades da vida brasileira, anunciando o despertar de uma realidade nua e crua, do nosso povo sofrido, - o guerreiro nordestino, que não desiste. Como dizia Guimarães Rosa - “O sertanejo antes de tudo é um forte.” Glauber lança no Cine Azteca o filme – DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, cujo resumo se encontra bem detalhado pelo jornalista e crítico de cinema – João Carlos Sampaio. Vide texto abaixo: O mais célebre filme de Glauber Rocha e talvez o título brasileiro mais conhecido no mundo, Deus e o diabo na terra do sol é um extravagante exercício autoral, no qual se misturam influências do cinema realista, do faroeste norte-americano, da literatura de cordel, da dramaturgia, do teatro simbolista. O Sertão Nordestino no Brasil dos anos 1940 é o cenário para a saga do vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey) e sua esposa (Yoná Magalhães). Castigado pela seca inclemente, pela condição de pobreza e exploração da sua força de trabalho, o camponês sangra o latifundiário que o oprime e foge com a mulher. Nas andanças o casal vai encontrar um líder messiânico (Lídio Silva), que promete prosperidade e boa vida aos que o seguirem. Eles resolvem se tornar discípulos, até que a mulher se rebela com os rituais exóticos e resolve apunhalar o religioso. Novamente, os protagonistas ficam à deriva. É quando vão encontrar o cangaceiro Corisco (Othon Bastos), cuja vida consiste em saquear para tirar o sustento. Parece uma alternativa razoável para o casal desvalido, até que surge a figura do matador de aluguel (Maurício do Valle), justiceiro decidido a matar o cangaceiro. DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL - é um filme repleto de simbologia, que usa os personagens para recriar as forças conflitantes no Nordeste empobrecido. O líder messiânico representa Deus como solução para as injustiças sociais; o cangaceiro é o satanás, ou seja, a solução pela força. O matador de aluguel restitui o equilíbrio, afirmando que nem Deus, nem o seu algoz, são donos da razão. Da fome e da miséria, Glauber supõe que virá a revolta. A ira como alimento suficiente para o homem comum, representado pelo vaqueiro Manuel, contestar a sua própria condição. Ele é quem irá se salvar em meio a essa peleja entre Deus e o diabo, metáfora simbólica à crença democrática, de que o povo é quem detém o poder e a força para persistir, superando os desmandos e adversidades. Pois bem! A censura veio e tirou de circulação a película. Com a perseguição ao autor pelos militares, Glauber foi obrigado a refugiar-se em outro país. Durante 20 longos anos, sepultaram a liberdade de expressão, conduziram o povo ao semi-analfabetismo, e ao pior, – analfabetismo político, com o poder público entregue à degradação total. Glauber morreu de septicemia, em 1981, aos 42 anos de idade, no Hospital Bambina, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, após ser transferido de um hospital de Lisboa, Portugal, país onde vivia desde o seu exílio em 1971. Deus e o Diabo continuam vivendo na terra do sol Feira, 14.12.2012.