quinta-feira, 6 de abril de 2017

CARTAS NÃO REMETIDAS


Rio de Janeiro, Verão, de 1964.



Caro amigo, Dida,


Como diz o poeta – “Faz silêncio, mas eu canto”.
Aqui, depois da instalação da ditadura militar, o que mais existe é o temor de uma reunião e de um bom papo, vez que, o encontro de mais de três, é complô, é atividade subversiva, tanto é que até os bares, boates e restaurantes onde se encontram vários amigos, são constantemente vigiados. Retomei os meus estudos e pratico yoga com Caio Miranda, um dos mestres mais respeitados nesta arte do Himalaia, exercitando a mente e o corpo, dentro dos princípios da “men sana in corpori sano”. Pela manhã estudo Francês na Maison de France e à tarde Filosofia, além de freqüentar o Conservatório de Música do Estado da Guanabara. A Livraria Ivanov que ficava na Rua Senador Dantas, próximo do Tabuleiro da Baiana, foi fechada pelo DOPS, considerada antro de subversão. Passei a freqüentar os “Sebos” que são livrarias que negociam livros usados, deixados, via de regra, por algum intelectual, que a viúva se queixava do mesmo tê-la trocado pelo prazer da leitura e por isto os vende no primeiro momento, o que é muito bom, porque encontramos obras raras e edições esgotadas. Tenho lido os poetas brasileiros e, gradativamente, vou remeter algumas poesias para o deleite do amigo, mesmo porque sei da dificuldade que é a aquisição de livros, aí em nossa cidade, de raríssimas livrarias, que se atêm aos didáticos. Quanto à música, continuo no Michel e no Le Rond Point, na Rua Fernando Mendes, em Copacabana, enquanto Rildo Hora e Altemar Dutra fazem o intervalo de Helena de Lima, na Boate Cangaceiro, que fica na mesma Rua, e nos encontramos sempre no final da noite, pela madrugada para amanhecer o dia tocando violão e cantando na Av. Atlântica, com o barulho do mar batendo na praia ao sol nascer. Gravamos o primeiro disco. Eu na RCA Victor e Altemar na Odeon. Acredito que ele fará mais sucesso, dado ao alto investimento da sua gravadora, mas vou batalhar. Meu único receio é meu envolvimento com a política estudantil e com a bajulação dos “Disques Jóqueis”, que se há de fazer e eu sou contra, sem contar que tem que comprá-los ou gravar composições horríveis dos mesmos, senão não tem acesso na caitituagem ou no jabaculê.
Hoje conheci um grande poeta, sonetista dos maiores, que é professor do Colégio Pedro II, - J. G. DE ARAUJO JORGE. Vai um soneto dele:

Os versos que te dou
Ouve estes versos que te dou, eu
os fiz hoje que sinto o coração contente
enquanto teu amor for meu somente,
eu farei versos...e serei feliz...

E hei de faze-los pela vida afora,
versos de sonho e de amor, e hei depois
relembrar o passado de nós dois...
esse passado que começa agora...
Estes versos repletos de ternura são
versos meus, mas que são teus, também...
Sozinha, hás de escuta-los sem ninguém que
possa perturbar vossa ventura...

Quando o tempo branquear os teus cabelos
hás de um dia mais tarde, revive-los nas
lembranças que a vida não desfez...

E ao lê-los...com saudade em tua dor...
hás de rever, chorando, o nosso amor,
hás de lembrar, também, de quem os fez...

Se nesse tempo eu já tiver partido e
outros versos quiseres, teu pedido deixa
ao lado da cruz para onde eu vou...

Quando lá novamente, então tu fores,
pode colher do chão todas as flores, pois
são os versos de amor que ainda te dou.
(Poema de JG de Araújo Jorge
do livro "Meu Céu Interior" – 1934)


Um grande abraço, do amigo de sempre,

Milton.

A PRAÇA



“A Praça é do povo como o céu é do condor”. Vaticinava o Poeta dos Escravos, quando a praça era realmente um espaço público para encontros, reuniões, apresentações de retretas, filarmônicas e orquestras, para o lazer de seres civilizados. Veio outro poeta apaixonado e escreve: “... A mesma Praça, o mesmo banco, as mesmas flores e o mesmo jardim...” e se transforma em canto que encanta os enamorados e o povo de modo geral, independente da polêmica da autoria dos versos e da canção. Na Praça Padre Ovídio ganhei o meu primeiro beijo na boca e sonhei durante semanas com a nova sensação de me saber amado por uma bela mulher de lábios ardentes. Na Praça da Matriz, assisti a musicalidade de filarmônicas que desfilavam e se apresentavam no Coreto, com dobrados e composições populares para o deleite de casais e famílias sentadas ao derredor, enquanto os jovens em paqueras soltavam beijos, jogavam serpentinas e confetes, durante as festas de Santana. Na Praça Froes da Mota, brinquei de esconder, chicotinho queimado e boca de forno, soltei pipas, troquei juras de amor e perambulei nos recreios matinais. Ali também fiz serenatas para a conquista que não se deu, porque o cavaleiro elegante e rico levou a princesa de um castelo que não construi. Na Praça Serzedelo Correia sentado ao banco busquei nas páginas do Jornal do Brasil o apartamento em Copacabana, para alugar, enquanto me separava da segunda mulher, que me flagrou com outra. Na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, fiz a minha ultima apresentação musical e encerrei a minha carreira artística, em 1968, por força da ditadura militar de 64. Na Praça da República, em Belo Horizonte, em 1977, por manifestação estudantil, tive suspensa a aula de estágio no curso de Direito da Universidade Católica de Minas Gerais. Enfim, a Praça de tantos encontros e desencontros, não mais existe. Restou a Praça como ponto de encontro de prostitutas, travestis, transexuais, traficantes e consumidores de drogas, bandidos e proxenetas, marginais de toda espécie, por onde não pode mais transitar o cidadão ou a cidadã. Exceção se faça às Praças da cidade do Rio de Janeiro, que visitei recentemente e continuam lindas e bem freqüentadas, com muito lazer.

Minha querida filha caçula em realização profissional que nos honra.